GRAÇA
Por uma significativa
coincidência, a palavra hebraica e a palavra grega que se traduzem em latim por
gratia e em nossa língua por graça, prestam-se. uma e outra,
para designar ao mesmo tempo a fonte do dom naquele que dá e o efeito do dom
naquele que recebe. E’ que o dom supremo de Deus não é totalmente alheio aos
intercâmbios pelos quais os homens se amam entre ai, e que existem entre ele e
nós liames que revelam em nós a sua imagem. Enquanto o hebraico hen designa,
em primeiro lugar, o favor, a benevolência gratuita dum personagem superior, e
depois o testemunho concreto desse favor, demonstrado por aquele que dá e faz
graça, obtida por aquele que recebe e encontra graça, enfim, o
encanto que atrai o olhar e retém o favor, o grego charis, de modo um
tanto inverso, designa em primeiro lugar o encanto irradiante da beleza, e
depois a irradiação mais interior da bondade, e enfim os dons que atestam essa
generosidade.
II. A graça na antiga Aliança
Revelada e dada por Deus
em Jesus Cristo, a graça está presente no AT, como unia promessa e como unia esperança. Sob diversas formas, sob nomes variados, mas sempre unindo o
Deus que dá ao homem que recebe, a graça aparece por toda a parte no AT. A leitura
cristã do AT, tal como São Paulo a propõe aos Gálatas, consiste em
reconhecer, na antiga economia, os gestos e os traços do Deus da graça.
1.
A graça em Deus. — O próprio Deus se define: “Javé,
Deus de ternura e de graça, lento para a ira e rico em misericórdia e
fidelidade” (Ex 34,6). A graça de Deus ao mesmo tempo é misericórdia
inclinada sobre a miséria (hen), fidelidade generosa para com os seus (hesed), firmeza inabalável em seus compromissos
(emet), ‘ternura de coração
e apego com todo o ser àqueles que ele ‘asna (rahamim), ‘justiça
inexaurível (sedeq), capaz de assegurar a todas as suas criaturas a
plenitude de seus direitos e de satisfazer a todas as suas aspirações. Que
Deus possa ser a ‘paz e a ‘alegria dos seus é efeito da graça: “Quão
preciosa é a tua graça - (hesed), é Deus! Os homens se
refugiam à sombra de tuas asas, saciam-se da superabundância de tua casa e tu
lhes dás de beber da torrente das tuas delicias” (Si 36,8ss), “pois tua graça
(hesed) é melhor que a vida” (63,4). A ‘vida, o mais precioso de
todos os bens, empalidece diante da experiência da generosidade divina, fonte
inestancável. A graça de Deus pode portanto ser unia vida, mais rica e mais
plena que todas as nossas experiências.
2.
As manifestações da graça divina. — A
generosidade de Deus se derrama sobre toda a carne (Si 1,10), sua graça não
permanece mum tesouro ciumentamente guardado. Mas o sinal luminoso dessa
generosidade é a ‘eleição de Israel. Esta constitui uma iniciativa totalmente
gratuita, que não se explica por qualquer mérito do povo escolhido, por
qualquer valor prévio seu, nem pelo número (Dt 7,7), nem pela boa conduta
(9,4), nem pelo “vigor de sua mão” (8,17), mas somente pelo “amor por vós
e a fidelidade à palavra jurada aos vossos pais” (7,8; cf. 4,37). No ponto de
partida de Israel não há senão uma explicação, a graça do Deus fiel que
guarda sua ‘aliança e seu ‘amor (7,9). O símbolo dessa graça é a
‘terra que Deus dá a seu povo, “pais de torrentes e de fontes” (8,7),
“de montanhas e vales irrigados pela chuva do céu” (11,11), “de cidades
que não construíste.., casas que não encheste, poços que não escavaste”
(6,lOs). Essa gratuidade não é desprovida de objetivo, não está derramando
às cegas ‘riquezas com as quais não saiba o que fazer. A eleição tem por
objetivo a aliança; a graça que escolhe e que dá é um gesto de
‘conhecimento, apega-se a quem escolhe, e espera dele uma resposta, o
reconhecimento e o amor: essa é a pregação do Deuteronômio (Dt 6,5.12s;
10,12s; 11,1). A graça de Deus quer parceiros, quer um intercâmbio, uma
‘comunhão.
Israel se nega a essa
resposta filial, a essa consagração da vida e do coração (cf. Os 4,ls; Is
1,4; Jr 9,4s). “Como um poço que faz surdir a sua água, assim (Jerusalém) luz surdir a sua maldade” (Jr 6,7; cf. Ez 16,20). Deus então
tem a idéia de fazer no homem aquilo de que o homem é radicalmente incapaz, e
de fazer que o próprio homem seja o seu autor. Duma Jerusalém corrompida ele
fará uma cidade justa (Is 1,21-26), de ‘corações incuravelmente rebeldes
(Jr 5,l ss) fará corações ‘novos, capazes de conhece-lo (Os 2,21; Jr
31,31). Isto será obra do seu ‘Espírito (Ez 36,27); será o advento de sua
própria ‘justiça no mundo (Is 45,8.24; 51,6).
III.
A graça de Deus se revelou em Jesus Cristo
Na pessoa de Cristo
“vieram-nos a graça e a verdade” (Jo 1,17), nós as ‘vimos (1,14), e, com
isso, temos conhecido a ‘Deus no seu Filho único (1,18). Assim como temos
conhecido que “Deus é ‘amor” (LI 4,8s), assim, ao ver Jesus Cristo,
conhecemos que sua ação é graça (Tt 2,11; cf. 3,4).
Embora a tradição evangélica
comum aos Sinóticos não conheça o termo, está plenamente consciente da
respectiva realidade. Para ela também, Jesus é o dom supremo do Pai (Mi 21,37
p), entregue por nós (26,28). A sensibilidade de Jesus para com a miséria
humana, sua emoção perante’ o sofrimento, traduzem aliás á ternura
e a misericórdia pelas quais se definia o Deus do AT. E São Paulo, para
encorajar os Coríntios à generosidade, lembra-lhes a “liberalidade (charis) de Jesus Cristo, ... como ele, rico, se fez pobre por
vós” (2Co 8,9).
IV. Gratuidade da graça
Se a graça de Deus é o
segredo da Redenção, ela é também o segredo da maneira concreta pela qual
cada cristão (Rm 12,6; Ef 6,7) e cada Igreja a recebem e vivem. As Igrejas da
Macedônia receberam a graça da generosidade (2Co 8,l s), os Filipenses receberam
sua parte da graça do apostolado (Fp 1,7; cf. 2Tm 2,9), que explica toda a
atividade de Paulo (Em 1,5; cf. ICo 3,10; G1 1,15; Ef 3,2).
Através da variedade dos
‘carismas se revela a ‘eleição, a escolha provinda de Deus, anterior a
quaisquer opções humanas (Em 1,5; Gl 1,15), que introduz na ‘salvação (Gl
1,6; 2Tm 1,9), que consagra a uma ‘missão específica (100 3,10; Gl 2,8s).
A gratuidade Inicial da
eleição (Rm 11,5) irá marcar, para Paulo, toda a existência cristã. A salvação
é o dom de Deus, e não a paga merecida por um trabalho (Rm 4,4); sem o que
“a graça não é graça” (11,6). Se a salvigio é devida a qualquer
observância, a graça de Deus já não tem objetivo, “a fé não
tem mais sentido e a promessa fica sem efeito” (4,14). Só a ‘fé na
‘promessa respeita o verdadeiro caráter da obra de Deus, que éser antes de
tudo uma graça.
O que redobra a gratuidade
da eleição são as condições concretas em que ela intervém. E’ um
‘inimigo que Deus escolhe, é um condenado que ele agracia: “Quando estávamos
ainda sem força. - pecadores... inimigos de Deus”,
impotentes para nos arrancarmos ao pecado, “Deus nos reconciliou consigo pela
morte do seu Filho” (Em 5,6-10). E a graça de Deus não se contenta em nos
salvar da morte por um gesto de absolvição (3,24; Ef 2,5); ela leva a
generosidade além de todos os limites. Onde havia proliferado o pecado,
superabunda a graça (Em 5,15-21); ela abre sem reserva a ‘riqueza inesgotável
da generosidade divina (Ef 1,7; 2,7) e a difunde sem conta (2Co 4,15; 9,14; cf.
100 1,7). Uma vez que Deus entregou por nós o seu próprio Filho, “como não
nos iria dar toda a graça?” (Rm 8,32).
V. Fecundidade da graça
A graça de Deus “não
é estéril” (lCo 15,10). Ela torna a fé capaz de produzir ‘obras, de levar
a cabo a sua tarefa (lTl 1,3; 2T1 1,11), de “operar pela caridade” (Gl 5,6)
e de produzir ‘frutos (Cl 1,10), “as boas obras que Deus preparou de antemão
para que nós as produzíssemos” (Ef 2,10). A graça é no Apóstolo uma fonte
inestancável de atividade (At 14,26; 15,40); ela faz de Paulo tudo que ele é,
faz nele tudo o que ele faz (100 15,10), tanto que o que nele há de mais
pessoal, «aquilo que eu sou”, é precisamente a obra dessa graça. Por ser a
graça princípio de transformação e de ação, ela exige uma constante
colaboraçio. “Investidos desse ministério, não fraquejamos” (200 4,1),
sempre atentos a “obedecer à graça” (1,12) e a “corresponder-lhe” (Em
15,15; cf. Fm 2,12s). A graça jamais falta, ela sempre “basta”, mesmo na
pior aflição, pois é então que se evidencia seu ‘poder (2Co 12,9).
A graça é assim o
‘nascimento para uma existência nova (Jo 3,3ss), a do ‘Espírito que anima
os ‘filhos de Deus (Em 8,14-17). Essa nova existência é muitas vezes
descrita por Paulo mediante categorias jurídicas, que querem marcar a realidade
do regime cristão instituído pela graça. O cristão é “chamado na graça”
(Gl 1,6), “estabelecido na graça” (Rm 5,2), vive sob o seu reino (5,21;
6,14). Mas essa existência não é somente um estado de tato cuja denominação
jurídica fosse fixada por uma autoridade; é uma vida no mais pleno sentido da palavra, a vida dos que, “mortos que retornaram
à vida”, vivem duma vida nova com o Cristo ressuscitado (Em 6,4.8.11.13).
Fazendo parte dum horizonte diferente, a experiência paulina vem nesse ponto a
calhar perfeitamente com a experiência joânica: a graça de Cristo é o dom
da vida (Jo 5,26; 6,33; 17,2).
Essa experiência da vida
é a do ‘Espírito Santo. O regime da graça é o do Espírito (Rm 6,14; 7,6);
o homem libertado do pecado dá frutos de santificação (6,22; 7,4). O Espírito,
que é o ‘dom de Deus por excelência (Ai 8,20; 11,17), “atesta a nosso espírito”
(Rm 8,16), por uma experiência Indubitável, que a graça faz realmente de nós
filhos de Deus, capazes de invocar a Deus como ‘Pai: Abba. Esta é a
‘justificação operada pela graça (Rm 3,23s): o podermos ser diante de Deus
exatamente o que ele espera de nós, filhos diante de seu Pai (Em 8,14-17; 1J
3,l s). Descobrindo então na graça de Deus a fonte de todos os seus gestos, o
cristão encontra diante dos homens a atitude exata, o ‘orgulho autêntico,
que não se gloria de ter o que quer que seja, mas de haver recebido tudo por
graça, e antes de tudo a justiça. Orgulho e graça, duas palavras que Paulo
gosta de aproximar (Em 4,2ss; 5,2s; 2Co 12,9; cf. Ef 1,6). Na graça de Deus o
homem consegue ser ele mesmo.
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